segunda-feira, 15 de outubro de 2012

3 capas de CD

3 capas de CD baseadas numa colagem desdobrável Outra capa Por último

domingo, 14 de outubro de 2012

Gondelim

Constava do Grande Livro, guardado na Catedral de Gondelim, que um guerreiro louro, descido do Norte, matara o urso que rondava aquele alto de pedregulhos, proclamando-se soberano das terras a perder de vista. Mas, a partir daí, só fêmeas se sentariam no trono, cabendo a precedência à que fosse de mais espessa barba, dentre as filhas da monarca reinante. As crias passavam o tempo, por isso, a besuntar as faces com caca de galinha, e arranjavam em trança as pêras e os bigodes, competindo entre si na espessura dos pelos de que se achavam providas. O reino de Gondelim era povoado por gentes que trabalhavam de sol a sol, sachando os campos produtores de trigo e cevada, artigos com que se atulhavam os celeiros reais. As rainhas governavam os seus súbditos, com grande tirania, cobrando impostos pesadíssimos, por cada alqueire de cereal que tirassem para seu próprio sustento, e obrigando-os a contribuir, com porcos da sua criação, para o apetite imenso de que padeciam. De cinco em cinco anos, pela Primavera, a que reinava punha doze ovos, na praça maior de Gondelim, entre estandartes desfraldados e toques de trombeta. Eram ovos enormes, com pintas vermelhas, que ali ficavam, à solheira e ao frio. Vinha um imenso pássaro negro, então, voando a rasar, de asas estendidas, os doze ovos de postura. Chamava-se Vuldmar, e morava nos rochedos altíssimos, que rodeiam os mares e oceanos do mundo. A sombra que projectava fazia com que, em cada ovo, se gerasse uma criatura, que rapidamente crescia, ao longo dos treze meses seguintes. A toda a hora, diurna e nocturna, os soldados vigiavam aquela dúzia de ovos, impedindo que o povo se aproximasse dela. Os homens e as mulheres do reino recolhiam-se, entretanto, ao fundo dos seus casebres, lamentando-se da dureza da existência. E, concluídos os treze meses, a rainha ingressava na praça maior, seguida pelo cortejo das suas quarenta aias, todas elas barbudas, todas elas saídas dos ovos das ocasiões anteriores. Os novos seres furavam a casca, a enérgicas bicadas, mas logo a soberana, munida de um bastão dourado, a as suas acompanhantes, armadas de paus, desatavam a matar, à bastonada e à paulada, qualquer recém-nascido macho. Durou isto várias décadas, até que, no reinado de Tructesinda II, a velha bruxa Lutgarda, que contava mais de cento e vinte e quatro anos, e que partilhava uma choupana com os seus oitenta e nove gatos, teve uma ideia brilhante. Numa noite de Janeiro, preparou umas boas sopas de vinho quente com canela, e serviu-as aos soldados que tiritavam, nos seus postos. Os soldados beberam como odres, e quando a bruxa os viu tombados, achegou-se aos ovos que estavam a cinco meses de estalar. Colou o ouvido a cada um deles, escolheu um, e levou-o para casa, debaixo de xaile. Meteu o ovo no forno do pão, cuidando de manter sempre aceso um borralhinho, para que a criança que estava lá dentro não gelasse. E, quando ela deu sinais de despertar, numa madrugada de Junho, Lutgarda retirou o ovo do forno, verificou que ele soltava um catraio de pele muito lisa e cabelos muito louros, e envolveu-o numa baeta de finíssimo linho. Botou-lhe o nome de Olderico, que era o de um rapaz escudeiro que ela amara de paixão, na sua tão distante juventude. Tructesinda II ordenou que procurassem o ovo roubado, mas não houve maneira de dar com ele. E, até à idade da razão, a bruxa foi criando o seu protegido, à base de muita castanha e muita papa de sarrabulho. Depois disso, ensinou-lhe quanta feitiçaria era do seu conhecimento, do poder de voar por cima das bouças, a cavalo numa palheirinha, ao dom de transformar o mijo das vacas em vinho doce, rezando o responso dos colhões de Belzebu. Ao chegar a mancebo, estava Olderico capaz de abater um javali, com um murro na cabeça, e de adivinhar o que tinha na mente, a todo e qualquer instante, o Santo Padre de Roma. Quando o nosso moço andava pela sua décima-nona primavera, abriu-se a época de uma nova postura. Soaram as trombeta, agitaram-se os estandartes, e a rainha, mais pesadona do que nunca da sua carga de ovos, desceu à praça maior, apajada pela procissão das aias barbudas. O povo mantinha-se abrigado, nos seus casebres, e não se ouvia latido de cão, nem voo de mosca, nem relincho de garrano que marcasse o festejo. Tructesinda II arregaçou as suas muitas saias, acocorou-se pensativamente, e soltou, entre medonhos estouros, a dúzia de ovos que trazia dentro de si. Neste momento, rompeu Olderico por ali adentro, brandindo a pá do forno que lhe servira de refúgio, antes de nascer. O povo corria, atrás dele, armado de seus bordões, formando uma turbamulta aos berros. E tal foi a pazada que o rapaz aplicou na cabeçona de Tructesinda II, acocorada na postura, que a rainha, logo ali, ficou defunta, entre o griteiro das suas aias. Mas o populacho botou-se de imediato, a desancar estas, com tamanhas bordoadas que não tardaram a cumprir destino igual ao da sua ama. Sem perda de tempo, os súbditos revoltados apoderam-se dos ovos, levaram-nos para os campos que rodeavam a casario, mexeram-nos com muita cebola, numa frigideira gigantesca, e produziram um saboroso pastelão, com que tiraram a barriga de misérias. A seguir, copiando o exemplo de Olderico, deitaram-se a dormir a melhor sesta das suas vidas. Olderico subiu ao trono de Gondelim, cingindo a coroa que, ao longo das eras infinitas, apertara a cachola das rainhas barbudas. Pouco depois, casou com a princesa de Gondar, menina de pele tão rosada e mimosa com a de seu real esposo, e como ele lourinha. Quanto a Lutgarda, nomeada maga-mor do reino, sobreviveu bastante, ainda, para conhecer os netos e bisnetos dos seus soberanos. De cinco em cinco anos as gentes felizes de Gondelim descortinavam, voando tristemente, aquele monstruoso Vuldemar, sempre mais magro, sempre mais desesperançado. Mas, da última vez em que apareceu, quase pele e osso, pairando muito baixo, desfizeram-se-lhe as escassas penas numa chuva de cinza. O argumento não é da minha autoria.